segunda-feira, 18 de maio de 2015

Relatos de um bebê velho zumbi

Por Ricardo Casmurro

Eu quero levantar da cama, mas n consigo. Estou muito pesado pra isso. É que carrego muitos anos nas costas, que hoje não valem de nada, sabe? Que nem cruzeiro, que já foi tudo e hoje não é nada. Como eu, que fui tudo e não sou nada, como o mundo, que é tudo, mas não é nada. Sabia que o universo é majoritariamente composto de nada? Que lindo pensar que toda história, todas as vidas e mortes, todos os sofrimentos e alegrias... Tudo foi nada. Pois é. É reconfortante para alguns. Para mim é desolador. Por que eu fui cada um deles e hoje não existo. Você pôde me beijar e sentir o gosto do sangue, mas cheirou a felicidade e se agarrou... Mas eu não parei de sangrar. E agora? O que vai ser de mim?

Sou velho, daqueles que são doces e sozinhos, vivendo num asilo. A diferença é que eu não tenho fotos do passado para me torturar, só a dor para me cobrir durante o sono e me deixar lento enquanto ela pesa sobre as minhas costas... Uma armadura? Por que e se ela me leva? Eu quero que ela se liquefaça e me leve correndo até a calmaria da noite plácida que sonhei de dia sob o sol quente... Mas ela se faz em estalactites sobre as minhas costas, penetrando lentamente pela minha pele, minha carne... E por isso que minhas costas são duras como o mármore... E por isso que o velho aqui não sai muito do quarto... Não tem vista, não tem companhia... Sou o velho que lê livros que não pôde quando estava dedicando sua vida a salvar o mundo.

Será que quando eu for velho vou desejar as jovens enfermeiras gostosas? Serei certamente daqueles velhos babões que tratam com gentileza a bela jovem na vã intenção de jantá-la. Mas serei daqueles que a vê como a carne que morderia ou como a vida que se renovaria dentro de mim? Quero a vida, quero o prazer, quero o amor... Quero tudo e não quero nada. Por que tudo que preciso é de nada. Ou não. Queria náo precisar de nada nem de ninguém. Queria ser o hermitão louco falando com as vozes em sua cabeça. Mas quero ser lúcido.

O que quero? Quero ser herói, quero salvar donzelas e reinos inteiros, quero ser Conan, capitão América, Jesus, superman. Mas sou o velho no asilo. Quero ser van Gogh, Vivaldi, da Vinci... Mas sou o velho no asilo. Quero ser George Martin, Joss Whedon, Frank Miller... Mas sou só o velho no asilo.

Talvez o que chamo de futuro seja apenas ilusões e na verdade eu seja o hermitão. Vai saber! Posso estar numa fantasia, realizando um sonho na forma de um soberano e incapacitante pesadelo. A máquina perfeita convertida em entulho. É a isso que me reduzi. De herói a semi-homem, tentando achar valor na vaidade, no que é vão, na pequenez a de uma vida miserável e inútil... Mas nem isso posso, pois sou o velho no asilo.

Dizem que se deve se amar, mas nunca me amei e já fui feliz. Era mais feliz quando não acreditava em felicidade. Era tudo e hoje sou nada.

Queria sair para uma caminhada. Mas isso é um desafio. Preciso de uma bengala, um apoio, um suporte. Preciso comer para continuar vivo. Visões aterradoras se mostram a mim durante o sombrio dia ensolarado... E por isso eu vivo à noite, na minha caverna, com fones de ouvido, vivendo um mundo que só existe para mim... Por que não quero estar sozinho. Quero amor, quero amar e ser amado. Me dá um bicho de estimação? Me dá uma casa? Me dá uma namorada que queira fazer sexo comigo? Tudo bem, pode ser uma prostituta TB. Quem não tem cão caça com gato. Ou não? Talvez você olhe pra mim ao caminhar pelo corredor do asilo... Mas eu só sou paisagem. Vejo você, bela, linda, calma, em poses e sorrisos e te quero. Mas te quero bem, beijos abraços, sexos ao luar, café na cama... Mas sabe o que é a verdade? Vou pedir à prostituta que durma de conchinha comigo. E só. É tudo que ru preciso. É tudo. Mas, no final, não será nada. Continuarei sendo o velho no asilo.

Minhas pernas não andam mais. Estão carcomidas e inchadas. Estou repleto de vermes comendo a minha carne podre. Acho que morri e esqueceram de enterrar... Ou me enterraram e eu levantei de volta. Pra falar a verdade, não vejo muita diferença. Só quero fumar meu cigarro que não existe e relaxar.

Por que estou te contando tudo isso mesmo? Não lembro, não sei por que. Mas preciso, sei que preciso, botar um milímetro da estalactite para fora.

Sou uma criança, uma criança que chora. Sou a criança na lata do lixo. Talvez tivesse sido melhor terem me cortado em pedaços para algum ritual macabro cristão. Mas não. Sou a criança no lixo só para ser o velho no asilo.

Sim, sim, eu sei, eu errei. Já disse, está satisfeito? Mas eu tenho o direito de me lamentar, não tenho? Se não quer ouvir as reclamações do velho que se vá. Mas por favor não vá e não me deixe aqui sozinho. Ah, sim, você não existe. Você sou eu falando comigo mesmo à noite em cima da cama com fome ouvindo música triste, velho no asilo.

E se a velhice for minha aposentadoria? DiEm que os aposentados, entre uma doença e outra, entre um remédio e outro, entre um médico e outro, podem viver o que não viveram antes! Mas não tenho essa esperança vã. Alimento-a, mas talvez no fundo eu saiba que meu destino sempre foi retornar ao bebê na lata do lixo enquanto saio da cova para voltar a viver velho no asilo. Mas quero aproveitar minha velhice - não com jogos de cartas, mas com conselhos para os garotos... Que não me querem ouvir. É claro, os garotos nunca querem ouvir os mais velhos, ainda mais eu, com essa minhas doce ranzinzanice. O ridículo que dorme de conchinha com a prostituta e pede para ela dizer "eu te amo". Sou o bebê no lixo.

E agora que você, eu, já sabe o que há de se saber sobre mim, vou dormir na minha lixeira, mas ainda sem prostitutas para deixar a vida mais escrota. Pelo menos estou embalado por músicas tristes.

Boa noite.

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